E O RENASCIMENTO DA IDADE DAS TREVAS
“O futuro não é um lugar onde estamos indo,
mas um lugar que estamos criando.
O caminho para ele não é encontrado, mas
construído e o ato de fazê-lo
muda tanto o realizador quanto o seu destino.”
Antoine de Saint-Exupéry
INTRODUÇAO
Após uma longa pausa volto
a fazer uso desse meio para dentro da conjuntura atual brasileira externar meus
pensamentos com relação ao que chamo de “crise de comunicação” entre a parte da
Igreja brasileira denominada evangélica e a parte da sociedade que atualmente a
vê com olhos críticos. Nesse texto, inspirado pelas obras de Bosch, traço paralelos
entre passado, presente e futuro,
assim como esse pintor em suas obras. Exponho nas próximas páginas meus pensamentos
e minha interpretação pessoal das obras aqui apresentadas na esperança de inspirar
mudanças e incentivar mais uma vez a Igreja a ouvir as críticas e buscar um
verdadeiro diálogo com a nossa sociedade. Confesso que não me foi possível
esconder minha própria decepção acumulada no decorrer dos últimos meses. Várias
pessoas para as quais exponho minha linha de pensamento tentam me calar dizendo
que falo de coisas que não entendo e com as quais não convivo, isso por viver
em um outro país. Essa maneira de calar o outro que pensa diferente da massa é
para mim mais um sintoma da crise à qual me refiro. Escrevo à respeito do que
percebo seja através de conversas faladas ou “chattadas” com ambos os lados e muita
leitura, mas também de uma visita recente ao Brasil, onde tive mais uma vez a
oportunidade de sentir esse clima de
desprezo em um lado e “descaso” no outro. Concordo que quem está do lado de
fora tem uma outra visão, mas está
visão tem também sua verdade. Se o leitor após essa longa introdução resolver
conhecer meus pensamentos, peço humildemente que o faça de modo aberto.
O MUNDO DOS TOLOS
Há 500 anos enquanto o Brasil acabara de se tornar vítima do chamado “descobrimento"
e enquanto a Igreja europeia desfrutava do auge do seu poder sobre o povo, um
pintor chamado Hieronymus van Akten (1450-1516), que assinava pelo pseudônimo
Bosch, segundo sua cidade natal Hertogenbosch na Holanda, começa a levar para a
tela sua visão do mundo de um ponto de vista totalmente pessimista. “O mundo
dos tolos” seria o termo que poderia intitular sua arte.
Além da sua cidade natal, as datas de seu nascimento e morte, assim como
seus quadros, tudo o que se “sabe” sobre ele é pura especulação: Bosch o membro
de uma seita esotérica apocalíptica; Bosch o blasfemo; Bosch o crítico social.
Pouco ou quase nada se sabe sobre esse pintor revolucionário. Apesar de pintar
motivos religiosos, seus quadros nunca foram encomendados por uma igreja ou
sequer ocuparam lugar nas paredes de uma.
Sua obra é mística. Pássaros e insetos são demônios e onde esses aparecem
ali percorre o mal a céu aberto. Mendigos, aleijados e tolos percorrem as
ruelas e inundam suas telas e, ao invés de despertarem compaixão no observador,
despertam medo e provocam calafrio. Bosch é a inspiração, sim, o pai, de
figuras de filmes de Science fiction como Star Wars ou Star Treck. Suas figuras
são mutantes, são algo entre animais e seres humanos, elas engolem e maltratam
mulheres e homens, espalhando horror por onde quer que passem.
A tentação de santo
Antônio. São Paulo
Mendigos. Áustria
No entanto, o que mais impressiona em seus quadros não é tanto a morbidez de
seus personagens, mas sim a tolice, a leviandade, a falta de caráter e a
indiferença dos chamados "Santos Representantes do Altíssimo" na
terra que parecem viver sem Deus no mundo, desfrutando desenfreadamente dos
prazeres e enganos que do púlpito condenam. Nas suas obras, Deus, o Todo
Poderoso, se mostra de pés e mãos atadas diante da tolice de seus “enviados” e
“representantes”, dos horrores do seu mundo, onde o diabo anda solto e os
chamados "Santos" o ignoram, colaborando cegamente na atuação do mal.
Somente o fim de todas as coisas parece estar seguramente sob o domínio do
Altíssimo. A condição humana é marcada de paixões e pecados, de enganos e
trapaças, de erros e suas consequências, das quais ninguém parece aprender
absolutamente nada. O rumo do mundo é seu fim e cego vive o homem sem perceber
que tudo que ele planta um dia colherá.
Bosch e suas obras me fascinaram desde meu primeiro encontro com as mesmas,
há 20 anos. Neste ano completam-se 500 anos de sua morte e, em sua homenagem,
sua obra quase completa, foi reunida primeiro na sua cidade natal e até 11 de
setembro no museu de Prado, em Madrid na Espanha. Bosch é, para muitos, um louco que em seus devaneios e em sua luta contra
seus próprios demônios, transporta seu delírio para a tela. Ao visitar recentemente uma exposição em sua homenagem e mais uma vez
analisar meus livros com fotos de suas obras, cheguei a uma conclusão pessoal.
Sou teólogo, pastor e crítico voraz da Igreja da qual sou um membro ativo.
Não somente na pregação da mensagem de amor de Jesus Cristo, mas também no
esforço de ganhar pessoas para a mesma fé que me abrem os olhos para Deus e,
quem diria, para o mundo. Como tal me pego traçando paralelos entre os
quadros de Bosch e a minha observação pessoal da Igreja hoje. Sendo assim, vejo
o pintor holandês como um profundo conhecedor do ser chamado humano. Sendo essa
uma verdade em sua obra, isso significaria que o homem não muda, que gente
é gente, seja em qualquer parte da terra ou em qualquer época da sua existência
e que “nem os Santos, têm ao certo a medida da maldade” .
Uma coisa é clara, a interpretação de suas obras está intrinsecamente
ligada à cultura e a fatos específicos da época onde ele viveu. Ainda que a
chave das mensagens deixadas por Bosch, em forma ilustrada, para sua geração e
outras futuras tenham sido perdidas no passado, resta uma grande evidência
sobre o que poderia ter levado Bosch a insistir, levando para tela motivos
religiosos mórbidos que ninguém penduraria na sua sala de estar.
No ano de 1494, o doutor em teologia e poeta Sebastian Brant (1471-1528)
publica em Basel o livro “O Navio dos Tolos", que caricatura em 7000
rimas, baseadas na moral bíblica, os abusos, fraquezas e tolos caminhos do
homem. Para o poeta, a tolice é sinônimo de um comportamento contra a razão,
que leva pessoas e a humanidade inteira para a perdição.
No museu de Louvre em Paris, Bosch demonstra sua versão pessoal dos versos
de Brant. "O Barco dos Tolos" de Bosch apresenta os “representantes
do Altíssimo” como personagens centrais na chamada loucura do mundo. Um padre e
uma freira assentados no centro de um barco com outros oito personagens. Entre
os dois "Santos" há um pão que nos lembra uma hóstia pendurada em uma
linha. Os dois, ao som de uma guitarra e sons sem sentido, saídos da boca de
bêbados, tentam juntamente com dois outros personagens, tanto bem humorados
quanto embriagados, morder o petisco sem o auxílio das mãos. O resultado, como
toda criança sabe, é que seus lábios se tocarão. Tabus são quebrados. Diante
dos olhos do observador da época isso seria um escândalo. A tolice se encontra
em todos os lados da tela. Garrafas vazias serão reenchidas. Um barril de vinho
num canto, uma garrafa semi-afogada no outro e mais uma mulher que, entre
homens, briga com um dos tolos que tenta esconder a preciosa bebida. Um tolo
desfruta do seu vinho, em um cálice, assentado em um galho de uma árvore. Um
outro sobe no mastro do barco com uma faca para cortar um frango assado
pendurado no topo do mesmo.
O barco dos tolos.
Paris
Enquanto a loucura geral corre seu rumo peculiar, duas figuras invisíveis
para os olhos dos que deveriam ver, nadam ao lado do barco. Um deles com uma
travessa na mão, mas ambos mendigando o pão. A hóstia, a flutuar no meio do
barco, é somente o início da brincadeira. O próximo desafio já se encontra
presente: cerejas deverão ser abocanhadas no ar. Aqui sim, os lábios santos e
profanos se encontrarão sem obstáculo, quebrando todo tabu sexual, moral e
religioso. No topo do mastro, acima da ave assada, uma bandeira com uma lua
crescente, símbolo do reino osmânico, e, acima dela, no topo da árvore, uma
coruja. Uma ave! O mal se encontra por todo lado.
Em 1529 o reino osmânico atinge seu auge, apenas 13 anos após a morte de
Bosch. Por isso acho necessário vermos, ouvirmos e comentarmos. Os turcos se
encontravam diante dos portões de Viena. No caminho até ali, nação após nação
abandonou o cristianismo, se rendendo ao islamismo e permanecendo até hoje fiel
ao mesmo. Moral da história: enquanto o mundo se atola cada vez mais na
desgraça e o fim se aproxima, os “Santos” brincam.
O carro de feno.
Madrid.
Em uma outra obra de Bosch, um quadro de altar que nunca ocupou um, mostra
três visões distintas ligadas por uma dobradiça. Um olhar no passado, presente
e futuro da humanidade. O início no Éden da inocência humana, vivida em
relacionamento íntimo com o criador; o mundo atual contemporâneo da geração
boschiana e o fim de todas as coisas para o qual caminha a humanidade. No
centro da nossa história, o carro de feno - símbolo da futilidade passageira da
existência humana. A vida é um sopro e ela finda tão rapidamente como feno ao
fogo. A parte direita do quadro aguarda o esquadrão do horror, as bizarras
figuras de Bosch, a chegada do homem ao fim de todas as coisas. No mundo tudo
muda, tudo se transforma e nossas obras vêem à luz.
O extrator de pedras.
Madrid
Em outra obra, Bosch retrata o tratamento de um médico charlatão. Este
promete tirar a tolice de um homem ao operar “pedras” da sua cabeça. Tudo isso
ocorre diante dos olhos de um padre e uma nona, com uma bíblia na cabeça. O que
dizer do “Assaltante de carteiras” ou do “Jardim dos prazeres”? Ao invés de
comentá-las, prefiro formular paralelos entre o mundo de Bosch e o nosso atual
e no centro dessa comparação, a Igreja.
O assaltante de
carteiras. Saint-Germain-en-Laye
O RENASCIMENTO DA IDADE DAS TREVAS
Vendo e analisando, mesmo à distância, a situação de parte da Igreja
brasileira evangélica, no seu esforço incansável de se tornar mais e mais
desprezível, sem gosto e sem brilho, me vejo traçando paralelos entre a mesma e
a visão de Bosch da tolice dos religiosos de sua época. Igreja se torna
escândalo, luz se torna trevas. Os que falavam da dívida do pecado humano
perdem a credibilidade diante dos olhos daqueles sobre quem diziam andar em
trevas. A medida da maldade no meio evangélico chegou ao seu auge. Se cada
geração de cristãos é responsável por ser luz para a geração da qual fazem
parte, como é pregado em inúmeros púlpitos, então vejo renascer a Idade das Trevas e solto meu grito desesperado
urrando: “O que será dessa geração? Deus tenha misericórdia!!!”
Enquanto o mundo ao nosso redor desaba, enquanto a miséria e o desespero se
espalha pelas ruas de nossas cidades, enquanto o mundo grita por ajuda, parte
da igreja busca por poder, pensando ser esse o caminho. Engano? Ao meu ver,
sim! A época onde igrejas evangélicas eram oprimidas pela igreja católica
passou. A igreja evangélica brasileira cresceu tanto que pela primeira vez na
sua história ela é capaz de eleger um presidente. Creio que aqui se encontra a
brecha para o tentador dentro de cada um de nós, pois essa ideia subiu à cabeça de muitos líderes. A
igreja abandonou as coisas para as quais foi chamada e começou a perseguir a
ideia de eleger políticos. Consequentemente, abandonamos a causa dos pobres e
das viúvas e o fazer o bem se tornou sinônimo de ocupar cargos políticos. Como
resultado dessa busca pelo poder, temos além dos escândalos envolvendo a chamada bancada evangélica no congresso, a divisão entre as igrejas evangélicas e o
fato da definição atual de quem é ou não é verdadeiro “crente” depender da
posição política do mesmo. Enquanto ocupamos nosso lugar no "Navio dos
Tolos" cegados pela fome do poder, Deus "perdeu" suas
testemunhas. Deus "caiu" nas pesquisas e perdeu em popularidade, seu
nome é intrinsecamente ligado a pessoas tão corruptas quanto outros, que deixaram
de amar para reinar e assim atamos as mãos de Deus no mundo e nos tornamos
motivos de escândalo. Pena que caímos nessa cilada. O engano invadiu a igreja e
abandonamos as coisas do reino para nos envolvermos com coisas desse mundo.
Enquanto brincamos de eleger políticos, nosso mundo se encontra na maior crise
de todos os tempos e o nosso fim se aproxima. Os sinais se encontram por toda
parte, assim como os símbolos do Reino osmânico nos quadros de Bosch. Mas, como
os “Santos” retratados por Bosch, colocamos na boca “um doce com gosto de
fel"
e “dançando sem roupas”
expomos nossa tolice e escandalizamos o mundo. Será esse o nosso fim, como foi
o fim de vários países cristãos na época de Bosch?
A cegueira é tamanha que assume dimensões apocalípticas. A noiva dorme.
Seus olhos se fecharam para o mundo ao seu redor. Seu coração perdeu a
compaixão e busca poder e nome ao invés de gente. E assim caminham evangélicos
assentados sobre um carro de feno e a longos passos seguindo em frente à
perdição que tanto pregavam. Bosch descreve hoje, mais do que nunca, o estado
da igreja, não somente no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, onde a Glória
de Deus e a causa dos pobres e oprimidos é trocada pela busca pelo poder.
Onde tudo começou? Devagar e lentamente, passo a passo, degrau após degrau,
foram descendo e descendo, trocando a glória de Deus pela glória dos seus
próprios nomes, tornando-se arrogantes, incorrigíveis e espalhando o engano.
Assim, sem perceberem, foram entregues aos seus próprios erros e perderam a
visão. Se dizendo sábios, tornaram-se tolos, motivos de escândalo, pedra de
tropeço, sujando o nome que está acima de todos os nomes, fechando as portas do
céu, escancarando e expandindo o inferno e vivendo sem Deus no mundo. Sal? Luz?
Amor? Onde?
CONCLUSAO
As imagens e cenas gritantes nos quadros de Bosch são mais que uma crítica,
são um apelo mudo à classe religiosa regente de sua época. Tudo que ele queria
era ser ouvido. Hoje, o fenômeno atual da massiva crítica da sociedade contra a
parte evangélica da mesma, fala tão alto quanto as imagens boschianas. A
situação, a qual chegamos, é grave e o que está em jogo não é nada mais e nada
menos que o futuro da Igreja brasileira em uma sociedade que mais do que nunca
precisa da mesma. Isso como Igreja e não como poder político. Como Antoine de
Saint-Exupéry escreveu: "Nós somos responsáveis pelo futuro que
teremos". Se a Igreja evangélica hoje parasse para ouvir com humildade,
sem justificar-se ou relutar, como as pessoas ao seu redor os veem, haveria
esperança de retornar ao caminho e assim crescer aos olhos das mesmas e, quem
sabe, ser em um futuro próximo novamente luz. Infelizmente tenho perdido essa
esperança cada dia mais. Que Deus tenha misericórdia de nós, a igreja, que se
tornou tola, e do mundo pelo qual ELE ofertou seu filho, demonstrando sua essência, o seu amor.